Mostrar mensagens com a etiqueta Rui Knopfli. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rui Knopfli. Mostrar todas as mensagens

26/05/2013

Isso 'ravolta'...

Rui Knopfli


 «ARS POÉTICA 63»...

Como fazer versos?
                                     Sentar
numa cadeira à secretária,
papel à frente, caneta em punho.
Esperar. Esperar em vão. Esperar.
Esperar mais ainda. Esperar sempre.
Se é fumador, fumar então
antes, depois ou no decurso.
Se não, continuar a esperar.
Se ao fim de um certo tempo
o dito tempo exceder o tempo
que se achou ser justo esperar,
desistir. Para voltar em novas
arremetidas desesperadas e inúteis,
em dias alternados ou consecutivos.
Em dada altura, vai-se de avião,
e ela chega como no expresso
do Poeta de S. Martinho da Anta,
mais pobre, menos ritmada talvez
(não admira, vai-se de avião!),
mas vem, contudo, e é o que importa.
Pode começar por uma palavra bonita,
coisa rara e difícil. E arriscada:
nunca se sabe o que virá depois
 que pode ser bem pior e fracassar.
Há quem começa com irmãos,
o que tem vantagens inúmeras,
desde as garantias de escolas às conveniências
e conivências do correligionarismo fiel
que assegura um público bastante certo,
embora pouco amante da poesia
e, de ordinário, pouco esperto.
Desvantagens:
traz grandes dores de cabeça e pesadas
responsabilidades para com a humanidade
inteira e o Homem com H maiúsculo,
tarefa sempre ingente para quem começa.
O melhor ainda, o mais velhinho
e garantido é começar pela palavra
eu. Será umbilicalista, egoísta,
eu sei cá, mas é pequenina e humilde
 e não diz mais do que diz, não tem
mais responsabilidade do que as que convém
seu minúsculo e modesto universo. Será
pouco, mas é um mundo. Para quê
querer incendiar os astros se, dentro de nós,
ainda não acendemos todas as luzes?

Rui Knopfli

27/04/2012

"Um tesouro com uma ilha"...

Jorge e Mécia de Sena com Rui Knopfli. Ilha de Moçambique. Ao fundo, a Capela de Na. Sra. do Baluarte.  





1.

Cabe num punho ou num bolso, este cabedal
ciosamente amealhado, mas puído já por usos
e abusos, irremediavelmente contaminado
pelas perversões da ignomínia ou da ignorância,
vez por outra remido, também, na lâmina

célere do mais acerado metal. Se, para brandi-lo,
ergo vacilante a mão, mais de cem fantasmas
antiquíssimos me cavalgam o pulso sobre
que inflecte a fragilidade calcificada
de séculos. Um movimento vai exauri-lo

sob o fardo, já outro lhe põe em risco
a quebradiça ligeireza. O verbo hesitar
lhe empresta o tónus correcto, no silêncio
respira, a sombra lhe dá corpo. Oferece,
por tal, essa aparência ilusória de ser

só chama, comburência sem combustível.
Podes tu, que apenas chegas e tudo ignoras
das traiçoeiras dificuldades experimentadas
nos lameiros que atolam o percurso
antes da pirâmide, proferir a primeira

palavra, como quem percute em festa
o cristal novo do sino alvissareiro.
Meu fendido, escuro bronze, roído
de musgos e cardenilho, apenas consente
a mágoa nocturna deste lamento a prumo.


2.

Há, porém, garantem, uma aventura da linguagem:
Um barco embandeirado de signos, sons,
rútilas conotações e uma carta de prego.
Um porão de surpresas, a rota misteriosa,
e, por certo… por certo um tesouro com ilha

em redor. Um mar de irisado esmalte,
por onde circulam peixes de esquiva prata,
lentas refractadas fosforescências, redondas
sinistras opacidades indecifráveis. Garantido,
ainda, o seguro contra todos os perigos.

Quem perde o barco, provê-se, como pode,
com o que tem. Poucos paus fazem uma jangada.
Na exactidão vocabular se articula o discurso.
Tenho só este exíguo e perplexo pecúlio
De palavras à beira do silêncio.


3.

Que, transformando-as em fim, o amor das palavras
não corrompa e destrua o amor da verdade.
Que a prevalência do jogo gratuito me não arraste
e me seja concedida a benfeitoria da recusa,
em todas as circunstâncias e por ilimitado prazo.

Que, o ser-lhes fiel, me não desobrigue
da fidelidade à fidelidade, ao sangue e à voz.
Que, anacrónico, discursivo, explicito,
negado, escarnecido e reduzido ao limbo,
um homem de gravata e fato escuro, contrariando

o sentido único do tráfego, a horda irreprimível
da excepção endémica desdobrada, por contágio,
em excepção generalizada, eu venha, ad absurdum,
a constituir a excepção da excepção. Que
as palavras sejam, pois, não uma exclusiva volição

de ser ou de significar; se conduzam, porém,
de tal forma que, significando, sejam e, sendo,
signifiquem; e uma e outra coisa se interpenetrem
e interliguem, tão aturada e porfiadamente, que
obstruam e interditem todo e qualquer escrutínio

unilateral, sendo, como tornadas são, objecto
outro e não a soma das parcelas integrantes.
E que a predominância de um dos termos arraste
consigo a perda irremediável da totalidade
acabada e unívoca. E que, por fim, tendo

de incorrer em qualquer dos nomeados riscos
ou danos, incurso seja menos por ser
do que pelo obstinado zelo de significar.
Nenhum inferno é maior que o da voz traída
E nenhum bem vale o da sua integridade.

Dez. 1971

Rui Knopfli in «O Corpo de Atena», IN-CM, pp. 15-19, Lx, 1994.