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05/08/2013



Revista Pé de Cabra nº 9


em júbilo pela oportunidade que nos deram,
estamos reconhecidos aos donos da vida.
E em romaria lhes beijaremos os anéis.
nos altares onde estiverem

nós, os que adoramos viver,
sentimo-nos na obrigação de agradecer.

aos patrocinadores, colaboradores,
a todos quantos nos emprestaram o riso e o ranho
aos que nos entusiasmaram encorajaram enrabaram e
aos que ainda estão para vir                      agradecemos,


, a colaboração
ao haxixe de Marrocos
à febre de malta
ao vinho da casa
à heroína

que casa c’o cowboy
lá para o fim do filme

agradecemos
     ao fim do filme
     por ter acabado
     às sombras da tarde
     por fazerem sombra à tarde
     aos caminhos d’aldeia

     por cheirarem a merda de vaca
     ao senhor padre por ser virgem
     nem ele sabe a importância que isso tem
     nós também não

agradecemos
     ao white horse
     royal label
     aos pudins flan
     aos maravilhosos momentos proporcionados

     à nossa namorada
     as incontáveis fodas
     e as que demos sem contar

     à mulher-a-dias
     pela religiosidade com que nos lavou as cuecas
     pela afeição com que nos viu crescer
     pela idiotice de nunca querer ter sido mais nada

agradecemos
     ao presidente da câmara
     ter perdido as autárquicas
     ao partidos no poder
     e aos que ainda nos hão-de vir foder
     às sogras tios e primas
     a paciência de serem há tantos anos da família

agradecemos
     ao sol à praia aos pardais ao ar lavado
     e a todos os outros heróis mortos em combate
     e imortalizados amortalhados em grandiosas
     estátuas muros de betão

agradecemos
     aos morcões e aos estúpidos
     trissómicos e outros produtos das aberrações cromossómicas
     a beleza com que são horríveis
     é aí que vemos a infelicidade de que escapámos
     é aí que temos a noção do tamanho bonito de existirmos assim

agradecemos
     à dor aos sofrimentos inú
     meros com que bordamos os nossos dias
     porque nosso será o reino dos céus
     aos ladrões e às putas
     aos corcundas aos paralíticos
     pela sensação de imprevisto quando caminhamos na rua
     por florearem o quotidiano
     por exibirem conceitos tão próprios de vida

e juramos
     passar a cumprimentar toda a gente
     estar infinitamente gratos
     infinitamente gatos
     piolhos porcos morcegos
     infinitamente coisos despidos ao frio
     vestidos ao sol
     saias casacos camisas gabardines de vénus tanta
     roupa tanta por sobre chãos corpos galácticos

juramos
     estar infinitamente gratos
     a todos os casais felizes
     uniões duradouras bodas de prata
     por demonstrarem o conceito de felicidade emparedada
     o valor da paciência
     o infinito do esforço

agradecemos
     à arte à ciência
     à história à sociologia à política
     à religião
     darem emprego a tanta gente

agradecemos
     à tecnologia aos motores
     pelo mesmo motivo
     às fábricas aos computadores
     idem
     e a tudo quanto faça barulho cheire
     mal foda a vegetação os
     rios
     os sóis a aragem
     porque inevitavelmente somos a favor
     duma poluição avançada,
     não dessa como nos países do terceiro mundo
     que é feita de gente magrinha feia
     de ver.
     Defendemos uma verdadeira poluição
     pesada d’acordo com os padrões europeus

agradecemos
     à tropa,
     verdadeira escola d’homens
     e à escola
     tropa de meninos

agradecemos
     a cristo     marx     reich
     pela inutilidade prática das suas demonstrações
     e agradecemos a todos os quantos
     fizeram demonstrações cheias de inutilidade prática
     terem tido tanto êxito

     não nos esqueceremos igualmente dos nossos teóricos
     já lhes basta a infelicidade de serem
     teóricos
     de se esquecerem de comer
     tudo a bem dos teoremas teóricos
     explanações metafísicas
     conceitos epistemológicos
     não podemos claro deixar de
     sentir ternura pelos nossos teóricos

agradecemos
     às entidades divinas
     a força que nos dão a garra
     o querer e o tesão

     e agora não agradecemos a mais ninguém
     porque vamos comer um bom bife
     talvez ainda assim devêssemos agradecer
     à defunta vaca
     porque sempre em tudo o que façamos sem dúvida contraímos
     obrigação comer um bom
     bife
     e foder uma garrafa de verde
     o que é um acto poético

     de incomensurável estética


João Habitualmente
in Revista Pé de Cabra nº. 9,
Porto/Bairro da Pasteleira, pp.5-9,
Junho de 1989




Revista Pé de Cabra nº 1