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01/02/2012

«Exemplum»

Eu acho que é cânone... Mas é capaz de ser uma minolta... de qualquer forma foi o Arnaldo Saraiva que a tirou em 1980 no Porto.


HERBERTO HELDER Por exemplo

                Ajudai-me potências lexicais, morfologias, sintaxes, tradições e memórias do dito, conversa do mundo. É fútil escrever: ilegível – e construir uma teoria lógica da ilegibilidade, uma tradição também, memória, «contexto», como eles designam, e decorre tudo isso do ilegível equívoco das transposições: transpor do instável e incontrolável para o estatuto controlável; com o pouco das cabeças quer entender-se a sensível cadeia das coisas que transitaram, representadas, traduzidas, apresentadas, das correntes da terra para as correntes do poema. Que recurso é este, que desentendimento, se não é só lateralidade, periferia, onde está o coração vivo e central? Rimbaud chega a Paris, o corpo é grande e os gestos não alcançaram ainda o tamanho do corpo, a voz para fora não possui ainda a melodia própria mas a voz interior já se casou com a razão do tempo, que poeta! O inadvertido Cros põe-se a inquirir: porquê tal palavra em vez de outra, e este ritmo porquê?, e aquela imagem? E o adolescente prodigioso, comendo sopa, não diz nada. Taciturno! Era um conversador péssimo. Talvez fosse possível explicar por aproximações, fornecendo imagens de imagens, metáforas de metáforas, criando um novo poema à margem do poema criado; toma-se isto por explicação? Talvez Cros o tomasse, mas Rimbaud, ele, não era explicador de coisa nenhuma: ardia, e lá estavam com perguntas sobre o fogo: se era de lenha, se de gás, se aquilo era papel queimado; e enquanto ele devorava a sopa não viam que se tratava do próprio, indefectível, simples, indeferível, ali à mesa, tão alto consumido das suas labaredas. Compreendem-se formas assim, há qualquer pequeno motivo para o grande motivo, essas formas podem ser mudadas? As linhas para onde pretendem transpor a ilegibilidade rimbaldiana, de modo a conduzi-la a uma vagarosa e minuciosa legibilidade, são as mesmas, sempre, para toda a poesia, e nessas linhas não se encontra escrita a música miraculosa nem a revelação nem o superlativo encontro das coisas nem a inteligência súbita do mundo. São formas ilegíveis; lê-las é a maneira única de ler: são as únicas legíveis para essa maneira única de ler. Claro, a metáfora extrema que é a realidade, a mais funda, a realidade fundada, fundamental, é uma imediata trama de conexões em nome, pois ao princípio era a acção do nome, o fiat lux faz a luz, o nome esclarece a coisa que alimenta o nome. As incroyables Florides rimbaldianas são as Floridas de uma cartografia assegurada pela aparição, a iluminação. Leia-se iluminadamente.
                Au fond ce que dit Rimbaud n’a pas de sens; je veux dire: de sens vers nous. Son but est prochain, immédiat, égoïste. En écrivant il ne travaille qu’à se débarrasser de son innocence. (Jacques Rivière)
                Disseram: não encontramos dificuldade em entrar nos poemas. De facto não encontravam. E eram desconhecidos circunstanciais, não tinha nada nas algibeiras biográficas, semióticas, psicanalíticas, ideológicas, simbólicas, nada, não eram acrobatas teóricos, vinham de longe, dotava-os apenas um talento virgem, a virtude de manejar perguntas que em si mesmas achavam respostas.
                Hermético. Coisa imemorial, esta, uma coisa insistida para arrumo de casas, anda-se pelos quartos, alguém tropeça nos móveis, cuidado, uma visita guiada. O hermetismo é um bónus à insolvência leitora. Explica-se. Não se explica a atenção mas a desatenção. Generosamente. Já foram tão abundantes que explicaram tudo. As explicações eram tão miúdas no seu delírio que a gente se inteirava na incalculável reserva e engenhosidade dos recursos ignorantes. A ignorância é muito mais brilhante que a ciência. Sabe muitíssimo mais.
                O sabido dos poemas era decerto bastante menos que o sabido dos explicadores, era igual ao que sabiam os cúmplices, os cúmplices sabiam entrar neles e andar e conspirar lá dentro com móveis e imóveis. Porque os entendiam exactamente dentro, entendiam-se com eles, por dentro, os cúmplices, rápida entrada na casa, portas abertas, desenvoltura pelos corredores adiante. Parece que só se pode dar razão ao entendimento imediato com razoes habitadas sempre por essa luz cardeal primeira, e essas razões são apenas parcimoniosos auxílios à inocência sabedora: escoras, apoios, razões da razão.
                Não cabe a um poeta «explicar-se», talvez não cabe a ninguém esse contrabando de uma zona para outra, pertence tudo completamente à zona de origem; nem existe legalidade nenhuma em deslocar os poemas deste lado para aquele lado, a poesia não é uma agência de transportes.
                Que um poema é ilegível numa pauta de legibilidade ou que pelo contrário é nela legível assemelha-se bastante à arrogância e violência políticas do poder de uma forma sobre todas as outras. O mais directamente legível nos poemas – sofram-no estes tempos de literalidade conversada – pode ser o menos legível na poesia.
                Os poemas são instantâneos, aparecidos. Não há chaves porque não há fechaduras. Os poemas estão lá. Reclamam apenas a soberania do seu território.
                Não se pede (pedir-se-ia antes que tivessem a astúcia de entender a espécie de entendimento pedido) que tornem aberto o fechado; os poemas hão-de permanecer fechados após todas as desocultações e hão-de ser abertos para quem neles entre como numa casa oferecida.
                Àqueles que os acharam assim, uma casa habitavelmente fácil, quis mover-se como gentileza protocolar a algumas pequenas curiosidades, disposição das dependências, os materiais, as vistas, as vantagens, circunstâncias da electricidade, do gás, da água, o funcionamento. Convidou-se por exemplo para assistirem à arrumação, à «montagem», um pouco como se assiste a uma montagem cinematográfica. Isto é uma moviola. Que não – responderam. Responderam que se assiste logo mesmo sem assistir, que essa montagem é inerente aos poemas, às coisas que estão neles, às coisas do mundo relacionadas em relações de poema, que a montagem é a sua coerência, o modo insubstituível e irrecusável de serem assim. Eram argumentos peremptórios. Vinham do coração do poema, vinham para fora, para onde era visível. Cá estavam os interlocutores providenciais de Mandelstam, os destinatários, vozes da voz, ouvidos do ouvido. Ao menos agora concordava-se com o mundo, o mundo concordava.
                Quando acabou de ler o manuscrito de Une Saison en Enfer, a atónita Viúva Rimbaud – como ela mesma firmava a correspondência – inquiriu do filho qual o significado daquilo que lera. Arthur respondeu que significava literalmente e em todos os pormenores o que lá estava. Bom. Ajudemos um pouco esta espécie de viúvas: para cada autor o significado de cada poema é literal. Se as viúvas puderem – que diabo!, alguma coisa hão-de elas poder –, encontrem essa literalidade. Suspeito de que nunca a encontrarão, porque ou se entende tudo como coisa óbvia, digo: a literalidade do autor coincide com a literalidade do leitor, ou não existe socorro para acudir à viuvez. Merda. Basta de conversas à beira-mar quando o mar está aí, invitation au voyage, o mar espera o bateau ivre.

Herberto Helder
In ‘A Phala’, n.º 69, Abril, Assírio & Alvim, Lx, 1999.

19/01/2012



HERBERTO HELDER PHALA DE MÁRIO CESARINY


     Há trinta anos os jovens gafanhotos caíram sobre a poesia radioactiva de Cesariny, comeram dela, fulguraram dela um instante como pequenas jóias uranianas. Carbonizou-os o fogo roubado. Jazem agora nos arrabaldes. Quem não assistiu nem suspeita. Pode fruir-se aqui uma lição rápida: o poder que mantém o universo de um grande poeta é inacessível – não está nas palavras mas entre elas, não está nos modos mas atrás deles, não está na claridade mas na obscuridade («Pour être vrai il faudrait être obscur». Flaubert). Eis o abismo entre mestre e discípulos: o mestre é a zona de radiações que os discípulos devassam em revoadas estudantes. As ciências naturais, espécies e espécimes colhidos, trabalhos de campo e casa, desnaturam-se nos fundamentos: não há nada para aprender. O autor, que propôs «alguns mitos maiores alguns mitos menores», só tem a inexplicável sabedoria de ser o dono deles e da sua aliança oculta. No âmbito profano da escolaridade, números e ordens são intransmissíveis. A floração atómica Cesariny ergue-se no deserto, não é paisagem para visitas guiadas, trânsitos, aulas, mapas. Não se ensina nem aprende nela nenhuma botânica democrática. É uma paisagem bárbara, entregue à escarpada biografia dos dias e das noites. Está ali, arboreamente explosiva e irreal como uma radiografia, negra à volta, inabitável na sua massa de luz.
     Com que linhas te coses? Com as dos meus poemas.
     Ora vejamos: vinte e cinco linhas, por exemplo, ou vinte e quatro, é linha a mais para coser um poeta. Ou a menos. Sempre a mais e a menos. «Aceita este risco supremo: renuncia a compreender aquilo que escreveu». Com uma linha assim cosem Emily Dickinson – que se cosera, ela, com as linhas de mil e seiscentos poemas. «O vento agarrou nas coisas do norte, / Acumulou-as no sul, / Dobrou depois o leste sobre o oeste (…)» – tudo enfiado numa agulha opondo magneticamente, não apenas as quatro partes cardeais, mas o poeta a si mesmo num prodigiosa costura celeste.
     Recapitulemos.
     Eles pensam.
     Prefiro o pensamento de que não há forma de dizer porquê e o como e o para quê. Talvez possamos recorrer à paráfrase, uma larga frase contendo em si, como coração, a intangibilidade do poema. Maneira de abraçar? Ele pede para ser abraçado? O mal é que a frase derivada, abraçadora, não aquece nem arrefece, não substitui. E então pergunta-se para que serve? Pois apenas serve aquilo que substitui. Se o poema fica, inamovível, sobra a paráfrase. Só interessariam as paráfrases a poemas desaparecidos, ardentes homenagens, louvor, invocações que restituíssem os belos corpos devorados. Seriam poemas em segunda mão, no entanto animados pelo sopro hínico. Os discípulos são autores em segunda mão, mas falta-lhes o espírito que restabelece a vida. As falas ecoam as falas escutadas – nelas está constantemente
a aparecer o que não desapareceu. Só as vozes da aparição conseguem louvar: louvam a cerimónia da sua aparição. Porque uma voz é isso mesmo, aparição.
     Há trinta anos, reiterando, Cesariny aparecia onde tentavam que desaparecesse. Agora aparece nas férias epigonais. Territorialmente desimpedida, esta poesia é tão absoluta e solitária que o comentário vai pouco, e dentro: é a última de nome religioso. E foi ele, Cesariny, quem o disse: «Assim acaba este estranho poema, o último de nome religioso escrito pelo Autor». O poeta cose-se com as suas linhas, religa tudo em nome escrito. Qualquer nome é o último, possui a força da renúncia, despede-se de si próprio. E compreende-se como primeira canção, a do fogo, misteriosa voz do mundo que o autor autoriza. Anda por aqui o Demónio, nesta música, ouve-se no fundo quando a leitura se torna mestra de si como de si era mestra a poesia: absoluta e solitária.
     É o que posso dizer, assistindo.
     Em quantas linhas, vinte e cinco, vinte e quatro, não coso nem descoso? Trata-se de entender, e faço pelo melhor: entendo o que não entendo, obscura coisa, esta, entender, prática do leitor religado. Também anda por aqui o Demónio, em tamanha audição. Que músicas para que ouvidos! As coisas do norte no sul, leste e oeste um sobre o outro. Dito em palavra pura. Quando se habita a poesia, condena o ofício às fogueiras acendidas em todos os lados do vento até o corpo se transmutar em diamante, um corpo que as luzes executam, como sanciona o étimo: luciferinamente. A pena capital, sofreu-a Cesariny, o canto desnorteado.
     Pois o norte é isso, um nome que procura, que descobre, com as suas inspirações boreais, uma versão de águas e terras juntas, elementos, complementos, um estilo de ficar australiano. O canto é uma desolação de ar e fogo. O poeta, servo e senhor dos pactos, sabe-o bem. Perguntem-lhe nos poemas. Mas nunca finjam que ele respondeu. Porque a sua metáfora, a alquimia baptismal, não é uma resposta aos outros, mas uma pergunta a si mesmo. E se há nela qualquer sedução, veja-se como vestígio daquela dança propiciatória, sempre hipnótica, difícil, ofuscante – exercida para a melhor posse dos talentos. É inerente ao capítulo infernal da comédia, um abuso no mais enigmático dos círculos: a beleza é monstruosa.

Herberto Helder
In ‘A Phala’, n.º 9, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1988.