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27/10/2014

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ÁLVARO LAPA

     E. J. M. – A afirmação de «autenticidade» a propósito da sua pintura parece-me extremamente débil, isto é, nada acrescenta à sua obra…

A. L. – É débil pelo lado do objecto referido. Qualquer afirmação em relação à minha pintura merecia uma atribuição diferente. A falha de objecto é uma questão de método, o que lhe parece a si inconveniente.
A «autenticidade» é um rótulo que não descodifica, é um termo que vai inaugurar uma série de tipo adjectivo. Tem um valor usual, é moda num determinado círculo e pressupõe que a questão da «autenticidade» se põe – e não necessariamente em relação à minha pintura, não sou eu que a provoco –, mas põe-se de uma maneira ambiente e põe-se, antes de mais, pela suspeita de «não autenticidade» de uns quantos.
Pode dizer-se – e concordo – que seja uma questão que não me pertence, ou pertence no mínimo. O que pertence à pintura da minha autoria, penso que não é talvez suscitada por esses objectivos, mas é levantada e aplicada a propósito desses objectivos. Portanto, pode ser um enredo a que eu não pertenço, ou os objectos não pertencem necessariamente. É uma categoria fortuita necessária para desvendar um enredo onde eu não estou. Mas isso funciona a respeito de categorias históricas mal aplicadas – e isso é um risco permanente da crítica de arte, na medida em que é exercida sob a forma de termos adjectivos, de termos classificatórios: o que se pode pensar (ou admitir) é uma alternativa para esse método adjectivo. Essa alternativa supõe uma sensibilidade, uma profissionalização e um esforço de aplicação que não são os da crítica corrente. Todos os artistas, no fundo, se julgariam credores de uma análise minúcia, poderíamos dizer, existencial.
A crítica funcionaria, então, como um horizonte de inteligibilidade, um horizonte de aproximação. Mas uma crítica dessas não tem o aspecto afirmativo; tem, pelo contrário, o aspecto negativo, probabilístico: o aspecto comparativo, mas não hierarquizante, no sentido, em última análise, da viagem no tempo.

E. J. M. – Mas como é que se pode passar de uma linguagem visual para uma linguagem verbal?

A. L. – Pode fazer-se isso colaborativamente, através de descrição de uma operação em termos de outra operação. Esta passagem pode efectuar-se através de um risco, não apenas de um condicionamento, mas de um risco, de uma ficção, de uma fábula.

E. J. M. – Mas isso tem sobretudo a ver com a suspeita…

A. L. – …e pode ser-se bem consequente nisso. É uma questão de mistificação pública mais ou menos completa.
Em relação ao visível ele mesmo – supondo que se pode isolar este termo, e pode-se na prática através do recolhimento – se eu estiver só a ver, se V. estiver só a ver, estamos só a ver. Mas em relação a isso qualquer outra tentativa de substituição da esfera prática é um abuso, mas o sistema desses abusos é a nossa cultura corrente, se extrapolamos constantemente dados de experiência.
Uma experiência não se reduz a palavras, a não ser uma experiência verbal directa, porque nem uma experiência verbal se transmite noutras palavras.

E. J. M. – Qual a importância do momento da criação?

A. L. – O momento da criação é importante num sentido alargado, ou seja, o «fazer»: no aspecto técnico executivo e não no aspecto técnico normativo. De resto, as obras de arte são apenas isso: superfície de execução.

E. J. M. – O perigo do Kitsch parece-me estar ausente da sua obra.

A. L. – Não creio que deixe de haver o perigo de um Kitsch disforme: não formalizado segundo o Kitsch vulgar. O Kitsch disforme é um empolgamento que pressupõe um valor de arte, neste caso sendo disforme através de valores – como feio, não feio…
Essa rede é sempre estreita. A ameaça de Kitsch, uma vez admitida, não me parece poder facilmente resolver-se em favor de alguém; ou seja, uma interpretação assim de uma obra pode resultar de um valor de antítese.

E. J. M. – …mas a afectação anti-Kitsch, também não existe…

A. L. – Talvez seja o mérito do meu falhanço.
Admitidas certas premissas da existência dominante do Kitsch, não vejo como se possa acreditar que uma obra não o contenha e consiga comunicar.
O Kitsch é uma concessão, uma permissão, que só através de uma retórica do heróico é que podíamos encontrar a promessa de outra coisa.
Mas eu não me convém admitir essas premissas porque são exteriores ao fazer.

E. J. M. – A comunicação é portanto um problema que se lhe põe?...

A. L. – O problema da comunicação põe-se-me ansiosamente como medo de não comunicar.

E. J. M. – Quais são, para si, as obras com um elevado grau de comunicação?

A. L. – Uma resposta desse tipo vai muito, para mim, no sentido sentimental, do humano. Isto corresponde a uma ideologia. E não corresponde talvez mais do que a isso: de que a vocação expressiva se possa e deva tentar sob essa promessa de encontrar finalmente um público ideal; se possa orientar no sentido da satisfação de situações limite, situações extremas que a motivam e onde por isso a garantia de mentira se torna mínima e a garantia de com isso tocar alguém se torna máxima.
Isto corresponde talvez, a uma estratégia, a um filão considerável da história da arte. Estou a pensar no minimalismo, não no sentido da história da arte, mas por aí justificado.

E. J. M. – O que representa para si o espectador ideal? Ou então: como deveria eu olhar um quadro seu?

A. L. – A sua maneira de olhar um quadro meu não é, ou não deveria ser, diferente de mim próprio em estado de espectador.
A crença no espectador ideal, como co-autor, nessas condições, é um mito do autor.
«O que se pretende pintar não são objectos – derivados do sentido comum – mas o efeito que eles produzem, sobre um público ideal, isto é, inexistente». (Catálogo exposição Março 1985).
Penso que isto é um devaneio ontológico.

E. J. M. – Em todo o caso, é no Kitsch que encontramos a promessa de co-autoria…

A. L. – Essa aflição da co-autoria é um pecado da arte.
Só pela arte se pode resolver essa situação, ou seja, pela forma renovada e cada vez mais através da crítica, auto-crítica, como parte do idioma artístico.

E. J. M. – Mas admite a possibilidade de chegar à verdade da obra…

A. L. – O espectador ideal não é nenhum santo, é uma função. A sua função é corresponder à obra num sentido muito próximo, senão idêntico ao do autor. E isso passa-se com certeza sempre que o autor se motiva nas suas próprias obras, e noutras obras, em relação à comunicação, entre os vários eus sucessivos de uma mesma obra do mesmo autor. Ele está em relação aos objectos de outrem, e até aos seus próprios objectos, numa relação de descontinuidade em que ele refaz, ou crê que refaz, muito constantemente, esse percurso desde a origem, à razão da obra.
O espectador ideal não terá que fazer senão isso; não poderá fazer senão isso.

E. J. M. – …aspirar à razão da obra…

A. L. – Nessa medida, o espectador ideal não se distingue dum crítico se fizer crítica, nem se distingue do autor se fizer arte.
A razão da obra é um limite. Um limite nunca atingido, visto que é um limite.
Mas é desse desafio, dessa dinâmica, que uma história de arte se faz.

E. J. M. – Como relaciona a razão com a verdade da obra?

A. L. – Talvez o próprio uso, a implicação, do termo razão assinale um domínio que não é o da verdade. Mas eu usava, admitia, o termo razão no sentido em que era determinado pela verdade.
A experiência que se faz directamente em arte é a da verdade, não a da razão. A experiência da razão é instrumental que era o terreno onde nos estávamos a colocar, que era o de uma instrumentalidade – da crítica, do falar…

E. J. M. – Qual é, em arte, o papel do acaso?

A. L. – O acaso é a verdade. Mesmo que seja admitido como uma estratégia é extremo. É uma vivência extrema, suponho que é indistinguível da verdade.

E. J. M. – Funciona do mesmo modo na literatura, o acaso?

A. L. – O dispositivo literário tem graus de especialização em que o acaso funciona plenamente. Funciona pelo lado do objecto e pelo lado do receptor. O exemplo mais consabido dessa tendência é a obra final de James Joyce; onde o acaso é incorporado, ou fingido, num nível respectivamente pleno.

E. J. M. – Um exemplo raríssimo, em todo o caso…

A. L. – São os exemplos que determinam possivelmente, a evolução das formas no sentido menos atávico.
O que se pode querer atingir senão a verdade nua e crua. A verdade nua e crua pelo lado do dispositivo é uma exigência. Então é demonstrável pelas obras mais exigentes…

E. J. M. – Mas pintar e escrever não correspondem a situações diferentes?...

A. L. – …duas situações diferentes de maleita….
E. J. M. – Ou disponibilidades diferentes?...

A. L. – Suponho que há antes de mais um condicionamento material.
A literatura pede-me – pode ser por defeito meu – um tipo de vida, um auto-condicionamento, e a pintura pede-me outro.
Quando é que se declara, pergunta você, a respectiva vontade, a respectiva vocação. Suponho que tem a ver sobretudo com condições ambientes. Ou seja, é antes de mais, uma disponibilidade material.
De qualquer modo a diferença é tão pequena entre uma e outra indisponibilidade material que parece uma questão especiosa…
…são fases. Não sei se o termo é esclarecedor, mas são fases.

E. J. M. – …que correspondem a…

A. L. – Correspondem a resultados. Só retrospectivamente é que eu verifico que um determinado ano, ou período, foi ocupado em escrever e outro em pintar.
Também funciona de outra forma, pela razão do reconhecimento. Pela razão de ser mais reconhecido socialmente como pintor, do que como escritor, acontece que as solicitações e as encomendas (não é verdade, mas…), as estimulações, são mais frequentes no caso da pintura para eu pintar, do que no caso da literatura para eu escrever.

E. J. M. – A que atribui a falta de solicitações para a literatura?

A. L. – Por muitos motivos não decifrados.
Admito perfeitamente que o que se faz não tenha eco sobretudo quando não é acompanhado de uma carreira, de uma insistência, no sentido sócio-profissional, como é o meu caso.
Talvez a explicação seja essa que você dava do Kitsch, se acaso funciona também em relação à minha escrita. É porque é uma escrita antipática, com termos médios de entendimento nulos, ou quase nulos. É uma escrita inclassificável: como um borrão, um disparate, uma enormidade
Diga você a sua opinião visto que está situado para isso…

E. J. M. – Penso que a sua escrita não é especialmente simpática para os leitores habituados ao consumo de obras «medianas»…

A. L. – Pensa então que eu não consegui furar todo esse mundo de apatia porque não fui suficientemente empolgante, nem suficientemente retórico…

E. J. M. – … o que eu dizia é que há uma categoria de leitores habituados ao consumo de obras «de efeito». Onde por exemplo a profundidade aparece como um artifício de retórica…

A. L. – No domínio da pintura também existe esse efeito do qual eu sou, pela via da autenticidade, o respectivo beneficiário, pelo reconhecimento e notoriedade como pintor (independentemente de ser desejável ou não) que corresponderia, pelo menos como suspeita, à vacuidade, pelo menos como você está a equacionar, de um fenómeno literário como esse.
Talvez, com esse termo do profundo se possa equacionar o problema do acaso e da necessidade. Ou seja, profundo é onde o acaso e a necessidade se não distinguem porque são termos admissíveis só quando se pode sair da respectiva necessidade que a profundidade implica; a profundidade tem uma consistência espacial, parece sugerida. E o caso seria pelo lado da disposição técnica aquilo que pode deixar aparecer esse excesso de, você dizia, memória, informação, direcções contraditórias, sofrimentos, que não deixa fazer de outro modo.

Eu duvido do interesse da forma final da entrevista. Pode ser muito circunstancial. Admito que algumas respostas sejam evasivas, ou de todo falsas, e que depois o confronto seja desanimador.

E. J. M. – Mas o único valor de uma entrevista é, talvez, o de circunstância.

A. L. – E quanto mais se procura a resposta final, menos se encontra.


Álvaro Lapa, entrevista a Eduardo Jorge Madureira, "Vandoma – cadernos culturais/1", Braga, 1985.