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08/12/2010

A «Flânerie» no Ocidente…

O SENTIMENTO D’UM OCCIDENTAL

A Guerra Junqueiro

I

AVE MARIA


Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Ha tal soturnidade, ha tal melancholia,

Que as sombras, o bulicio, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de soffrer.


O ceu parece baixo e de neblina,

O gaz extravasado enjôa-me, perturba;

E os edificios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se d’uma côr monótona e londrina.


Batem os carros d’aluguer, ao fundo,

Levando á via ferrea os que se vão. Felizes!

Occorem-me em revista exposições, paizes:

Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!


Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações sómente emmadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.


Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao hombro, enfarruscados, seccos;

Embrenho-me, a scismar, por boqueirões, por beccos,

Ou érro pelos caes a que se atracam botes.


E evoco, então, as chronicas navaes:

Mouros, baixeis, heroes, tudo resuscitado!

Lucta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jámais!


E o fim da tarde inspira-me; e incommoda!

De um couraçado inglez vogam os escaleres;

E em terra n’um tinir de louças e talheres

Flammejam. Ao jantar, alguns hoteis da moda.


N’um trem de praça arengam dois dentistas;

Um tropego arlequim braceja n’umas andas;

Os cherubins do lar fluctuam nas varandas;

Ás portas, em cabello, enfadam-se os logistas!


Vasam-se os arsenaes e as officinas;

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;

E n’um cardume negro, herculeas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vem sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, á cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.


Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã á noite, a bórdo das fragatas;

E apinham-se n’um bairro aonde miam gatas,

E o peixe pôdre géra os focos de infecção!


…Continua!

Cesário Verde


Cesário foge pelos herbanários


Cesário andava na cidade com plantas

silvestres metidas na cabeça

Irrompiam-lhe nas calçadas no repuxo das fontes

no grito das varinas no trote das patrulhas


Ninguém sabe contudo que em fidelíssimo segredo

deixou outro livro do qual Silva Pinto nada soube

Nem o Caeiro da planta é uma planta é uma planta

que se apanhasse fechava-o à chave na arca


para girândolas futuras dos casmurros das Universidades

Mas nada de suspense O livro é apenas um herbário

todo rechunchudo de coisas trivialíssimas

como a receita para lavar manchas de amora nos bigodes


ou de como arrancar sem dor cucos de tojo que um dia

lhe pegaram uma coceira dos infernos Depois há folhas

e folhas amarelecidas de chuvas-de-oiro mongaricas

urzes torgas estevas-dos-saloios sarças


alecrins alfenas lentiscos e loendros

Um nunca acabar Ao lado de um esparto

a nota: tenho o pulso como um cajado de pastor

e meus dedos amadurecidos como um céu de Verão


Assim se sentimentaliza um ocidental

Confiar como? Se quando menos se precata

salta ou voa sobre a Dor humana

e as marés de fel como um sinistro mar?


Folhear o herbário é vê-lo como abria as portas

A toda a moscaria É vê-lo esquecer-se da Cólera

E da Febre Ver com deixava que a terra lhe marinhasse

Como um vinho de fogo pelo exangue corpo acima


E ver isso é bom Admirar-lhe os ouvidos

encostados ao sol à escuta que os estames

e pistilos se pusessem a ferver O pólen

a descer o corrimão da luz até cobrir de um certo oiro


a sombra pisada da sua melancolia O vinho

a espirrar numa chuva muda de palavras

Coisa estranha: o cântico de um homem

expresso em folhas secas caules flores


breves notas num herbário como: é meu irmão

o entrecasco de sobro bom para a taninagem

As maçãs de espelho não andam bem empapeladas

Fica-lhes mal o verde e a serradura


Alexandre Pinheiro Torres in O Ressentimento dum Ocidental, Moraes editores, col. Círculo de Poesia, 1981