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14/04/2014

O "Coração Quase Branco" segundo Carlos Alberto Machado

"É no que dá um iogurte estragado: náusea repentina, vómitos disfarçados de arrotos, cólicas intestinais. Sanita comigo. E logo logo para a cama – a prevenir achaques maiores com a ajuda de uma infusão de macela e cidreira.
Aproveito a frouxidão inesperada do corpo e o repouso de meio da tarde para ler. Entre compras e ofertas recentes, decido-me pelo “Coração Quase Branco”, do António Cabrita – livro da 50 Kg (como habitualmente composta em caracteres móveis e com impressão a condizer), que o seu editor, o poeta Rui Azevedo Ribeiro, me tinha dado em Coimbra, no Mal Dito, meia dúzia de dias antes.
Começo a leitura meio distraído, a dor de cabeça, fininha, chateia. Mas, entre o ir e o voltar à primeira linha do texto, entro no “tom” do Cabrita – e desperto completamente quando leio “Dácio”, Ricarte Dácio, o intelectual culto, homem subtil e afável, delicado, gentleman, mecenas das literaturas e das artes, o mesmo Dácio que um certo dia (há uns seis anos?) pegou numa caçadeira e matou a mulher, o filho, o gato e a ele próprio.
Conheci o Ricarte Dácio nas noites do café Monte Carlo, do bar Bolero, do Ritz Club, do Cantinho dos Artistas no Parque Mayer, nos finais de tarde do café Expresso e das Galegas; nos dias fervorosos da Revolução e nos dias apaziguantes e lassos da democracia pós 25 de Novembro. Em 2010, quando estive em Maputo, a figura do Dácio e a sua morte incompreensível, e tão silenciada, meteu-se na conversa entre mim e o Cabrita, que teve com ele uma relação mais próxima.
Para além das circunstâncias de natureza pessoal, o curto texto – 12 páginas – é uma peça de uma grande inteligência e sensibilidade, na linha de um Pacheco da “Comunidade” ou de um Virgílio Martinho de “O Relógio de Cuco”. O Cabrita cruza a história de vida do Ricarte Dácio com a sua (em Maputo), “cobarde e falido de esperança e qualidades” e dá, a uma e a outra, as voltas necessárias para que entre os actos literários e os actos de vida se teça uma poderosa e inextricável teia de sentidos. E se ele, Cabrita, “falido, causticado e doente”, “tivesse à mão uma caçadeira e um punhado de munições (…) e acabasse esta agonia com três tiros, alguém se lembraria de duvidar que pudesse ter sido um gesto tão hediondo? Alguém, ao menos, colocaria dúvidas? Será que as merecia? Porque não há modo de suportar ‘corajosamente e sem dor’ a decadência mental que nos vela já o cadáver, a puta que os pariu. É um contra-senso, e vale o esforço de respirar para o cheiro a trampa?”
A minha alma débil (os meus intestinos, parece, partilham da mesma índole) arrebita com uma escrita como esta – e com a atitude pessoal do Cabrita: pegar a coisa pelos cornos é que dá tusa, e não essas coisas vagamente literárias de filhos de tordos que voam, serôdios, para as terras brasis, e a respectiva democracia que apenas existe nos ditos média e redes sociais. Literatura e democracia que nunca hão-de saber quem foi o Ricarte Dácio e tudo o que ele representou, mesmo que o Cabrita lhes mande aos cornos, com toda a força, este “Coração Quase Branco”.
Morre-se disto, desta democracia estragada. De iogurte estragado, parece que não."

CARLOS ALBERTO MACHADO

RETIRADO DAQUI

24/03/2014

Do "Coração Quase Branco"...



Sinopse:
O Coração Quase Branco de António Cabrita é, mas não só, uma carta póstuma ao Ricarte Dácio que, para quem não sabe, foi um gentleman e livreiro alfarrabista, bem como um dos maiores apoiantes vs. mecenas de poetas e escritores surrealistas, e não só, do Café Gelo. A sua morte, uma espécie de potlatch (“uma coisa à romana” como o disse Mário Cesariny) é ainda hoje um assunto muito ‘cadáver esquisito’...  e não só!











28/11/2011

«Ecce» o cometa com aileron...



“Os mistérios nunca vêm à mão
apesar dos cometas de infância
e de um tecto de folhas secas
lacrar em susto os profetas. Volta
e meia o vinho tinge os lábios
com a letra que a Deus embriaga –
mas a chuva desarvora os segredos.
Podia um coração em chamas
fender o espaço sideral: raro
o fruito que depois de comido
volta a ser polpa. E pode uma Palavra
espaventada, desencorar o Frio,
a Clausura? Búzio à Chuva? Eis
o homem oco – e dentro o coágulo”

António Cabrita in “Carta de Ventos e Naufrágios”, p.15, Teorema, 1997.

17/10/2011

Pedra-dada...

”«No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.»: eis o vendaval que Drummond de Andrade perpetrou na década de 30 no seio da comunidade literária.

Raramente um poeta, para mais inoculando pelo ritmo e pela repetição um leque de significados em materiais tão humildes, conseguiu clarificar tão eficazmente um núcleo imóvel, i. é, o que se manifesta durante (e apenas nesse momento) o acontecimento seminal que lhe abole a dualidade do interior e do exterior. Se a pedra «desencadeia a reflexão, pois cria a aporia que está no princípio de todo o querer saber» (David Arriguci Jr.), a repetição sugere que «no meio do caminho» Drummond partilhou algo vasto e incognoscível (daí o espanto e a afasia que a repetição sublinha) cujo mistério ele nunca poderia descodificar ou iniciar e que empurrou o poema para uma experiência aberta, para um território propenso à «mise en danger». Talvez porque «Esta vida / de que falo / não se escoa, não alimenta os superlativos / diários. É única / e perene sobre a escondida fluência / dos movimentos». (HH) “

António Cabrita in «Combate de Flautas», pp. 7-8, &etc, Lx, 2003. 

08/10/2011

É do picante...

António Cabrita, foto retirada daqui

ROSA COM ESPINHOS

O que invejo nos sages é o que não gosto
na sua literatura. Falta-lhes em Susto & Cólera
o que sobra em Graça, como se abstraídos
do adocicado com que o morto ao segundo
dia empesta o ar. Sou um compulsivo

leitor de sages mas sei que no último fôlego
o ouriço sonda o que há de macio no traseiro
do invisível e o fogo se atiça com a água.
Abro a boca e logo um sage se senta
ao colo de uma sílaba, é imediato, tenho

a boca cheia de santos, ainda que a afro-
-china que acabou de passar é que
me levasse ao engano. Contradições,
arestas, obstáculos, situações: o sal
da poesia, ainda que pareça impertur-

bável a sua líquida transparência. Mas,
o gume da luz naquela face engoliria tudo.
 Do pouco que estimo em Bukovski
Adoro este verso, «Nasci para roubar rosas
nas avenidas da morte». Rosas com espinho.

António Cabrita in «Piripiri Suite seguido de Visions de L’Amen», p.41, Ver o Verso, 2007, Maia.

COLÓQUIOS COM O MEU GATO, 2

Não distinguir entre os frutos
da insónia e os frutos insones
pode ser a desgraça do poeta.
Quem livra de dissabores
o crente que não separa

Deus da sua mudez? Não
te tomes por mente subtil
e refinada p’la arte. A maçã
rola de uma para outra
mão até despertar no ramo?

Não dispõe a vida sobre
o tampo os resguardos,
como moedas cambadas?
Baldeou-te um golpe de ar,
um golpe d’ar, um golpe…

António Cabrita in «Piripiri Suite seguido de Visions de L’Amen», p.43, Ver o Verso, 2007, Maia.


Piripiri Suite seguido de Visions de L’Amen - Poemas da Distância Incomum -, ed. Ver o Verso,  Maia, 2007.