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11/01/2011

Alexandre Grande


Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999)

10

A VIDA: ÚLTIMAS TEIMOSIAS

À carne são permitidos todos os desastres.

Esta oliveira segura ainda

os próprios intestinos com as mão. Nada

veio de súbito preveni-la do fim.

Mas não há noites totais. Na mais escura

o peixe do fundo do rio vem até à superfície

fazer sinais com o seu semáforo. Penso

no sorriso da deusa ausente acaso do Olimpo

quando o monje veio procurá-la. Uma deusa

de seios tão firmes que neles se poderia partir

um martelo de bronze. E o Olimpo ensopado pela

[urina

doutros poetas e doutros monjes mesmo assim de

[bexigas cheias.

Tu vês? A vida insiste em excesso para que sobre-

[vivamos:

emprenhar deusas! Uma luz intensamente

brilha. Sim! Brilha! Brilha! É uma oliveira

teimando em dar azeite até ao desastre.


Alexandre Pinheiro Torres in “A Flor Evaporada”, p.45, D. Quixote, Lx, 1984.


13

OS NÁUFRAGOS

Os visitantes deixaram-se ficar até que o

soalho se tornou visível através

do tapete. E o que é mais: já não tinham

nada para dizer. As cabeças

tinham regressado a casa e as suas

línguas eram agora os polegares dos próprios

pés. Falavam para baixo mordendo a

carpete mordiam-na e ruminavam-na.


Alexandre Pinheiro Torres in “A Flor Evaporada”, p.51, D. Quixote, Lx, 1984.


14

O MORTO: A FLOR DE SI

A única coisa certa sobre o morto

é que já foi senhorio de carne:

agora é perdê-la flor que se

evapora e sorrir até aos ossos.


Amarante, tarde e noite de 10 de Julho de 1983


Alexandre Pinheiro Torres in “A Flor Evaporada”, p.53, D. Quixote, Lx, 1984.


Bibliografia:

§ Científico-Cosmogónico-metafísico de Perseguição,1942 (ensaio)

§ Novo Génesis,1950 (poesia)

§ Quarteto para Instrumentos de Dor, 1950 (poesia)

§ A Voz Recuperada, 1953 (poesia)

§ Programa para o Concreto, 1966 (ensaio)

§ O Mundo em Equação, 1967 (ficção)

§ A Ilha do Desterro, 1968 (poesia)

§ A Terra de Meu Pai, 1972 (poesia)

§ Vida e Obra de José Gomes Ferreira, 1975 (ensaio)

§ O Neo-realismo Literário Português, 1977 (ensaio)

§ A Nau de Quixibá, 1977 (romance)

§ Os Romances de Alves Redol, 1979 (ensaio)

§ O Ressentimento de um Ocidental, 1981 (poesia)

§ A Flor Evaporada, 1984 (poesia)

§ Antologia da poesia brasileira do Padre Anchieta a João Cabral de Melo Neto, 1984 (antologia)

§ Contos, 1985 (romance)

§ Tubarões e Peixe Miúdo, 1986 (ficção)

§ Espingardas e Música Clássica, 1987 (ficção)

§ Antologia da Poesia Trovadoresca Galego-Portuguesa, 1987 (antologia)

§ Ensaios Escolhidos I, 1989 (ensaio)

§ Ensaios Escolhidos II, 1990 (ensaio)

§ O Adeus às Virgens, 1992 (romance)

§ Sou Toda Sua, Meu Guapo Cavaleiro, 1994 (ficção)

§ A Quarta Invasão Francesa, 1995 (romance)

§ Trocar de Século, 1995 (poesia)

§ A Ilha do Desterro, 1996 (poesia)

§ Vai Alta a Noite, 1997 (romance)

§ O Meu Anjo Catarina, 1998 (romance)

§ Amor, Só Amor, Tudo Amor, 1999 (romance)

§ A Paleta de Cesário Verde, 2003 (ensaio)



08/12/2010

A «Flânerie» no Ocidente…

O SENTIMENTO D’UM OCCIDENTAL

A Guerra Junqueiro

I

AVE MARIA


Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Ha tal soturnidade, ha tal melancholia,

Que as sombras, o bulicio, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de soffrer.


O ceu parece baixo e de neblina,

O gaz extravasado enjôa-me, perturba;

E os edificios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se d’uma côr monótona e londrina.


Batem os carros d’aluguer, ao fundo,

Levando á via ferrea os que se vão. Felizes!

Occorem-me em revista exposições, paizes:

Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!


Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações sómente emmadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.


Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao hombro, enfarruscados, seccos;

Embrenho-me, a scismar, por boqueirões, por beccos,

Ou érro pelos caes a que se atracam botes.


E evoco, então, as chronicas navaes:

Mouros, baixeis, heroes, tudo resuscitado!

Lucta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jámais!


E o fim da tarde inspira-me; e incommoda!

De um couraçado inglez vogam os escaleres;

E em terra n’um tinir de louças e talheres

Flammejam. Ao jantar, alguns hoteis da moda.


N’um trem de praça arengam dois dentistas;

Um tropego arlequim braceja n’umas andas;

Os cherubins do lar fluctuam nas varandas;

Ás portas, em cabello, enfadam-se os logistas!


Vasam-se os arsenaes e as officinas;

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;

E n’um cardume negro, herculeas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vem sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, á cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.


Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã á noite, a bórdo das fragatas;

E apinham-se n’um bairro aonde miam gatas,

E o peixe pôdre géra os focos de infecção!


…Continua!

Cesário Verde


Cesário foge pelos herbanários


Cesário andava na cidade com plantas

silvestres metidas na cabeça

Irrompiam-lhe nas calçadas no repuxo das fontes

no grito das varinas no trote das patrulhas


Ninguém sabe contudo que em fidelíssimo segredo

deixou outro livro do qual Silva Pinto nada soube

Nem o Caeiro da planta é uma planta é uma planta

que se apanhasse fechava-o à chave na arca


para girândolas futuras dos casmurros das Universidades

Mas nada de suspense O livro é apenas um herbário

todo rechunchudo de coisas trivialíssimas

como a receita para lavar manchas de amora nos bigodes


ou de como arrancar sem dor cucos de tojo que um dia

lhe pegaram uma coceira dos infernos Depois há folhas

e folhas amarelecidas de chuvas-de-oiro mongaricas

urzes torgas estevas-dos-saloios sarças


alecrins alfenas lentiscos e loendros

Um nunca acabar Ao lado de um esparto

a nota: tenho o pulso como um cajado de pastor

e meus dedos amadurecidos como um céu de Verão


Assim se sentimentaliza um ocidental

Confiar como? Se quando menos se precata

salta ou voa sobre a Dor humana

e as marés de fel como um sinistro mar?


Folhear o herbário é vê-lo como abria as portas

A toda a moscaria É vê-lo esquecer-se da Cólera

E da Febre Ver com deixava que a terra lhe marinhasse

Como um vinho de fogo pelo exangue corpo acima


E ver isso é bom Admirar-lhe os ouvidos

encostados ao sol à escuta que os estames

e pistilos se pusessem a ferver O pólen

a descer o corrimão da luz até cobrir de um certo oiro


a sombra pisada da sua melancolia O vinho

a espirrar numa chuva muda de palavras

Coisa estranha: o cântico de um homem

expresso em folhas secas caules flores


breves notas num herbário como: é meu irmão

o entrecasco de sobro bom para a taninagem

As maçãs de espelho não andam bem empapeladas

Fica-lhes mal o verde e a serradura


Alexandre Pinheiro Torres in O Ressentimento dum Ocidental, Moraes editores, col. Círculo de Poesia, 1981