16/01/2017

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SERRADURA

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a môna, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma,
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje só sonha pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo.

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido de um moscardo,
Ou comichão que não passa;

Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas,
Ou qualquer coisa entre tantas
De uma antipatía igual...

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia...

Qualquer dia, pela certa,
quando eu mal me precate
é capaz de um disparate
Se encontra uma porta aberta...

Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
– P'ra acabar êste intermédio
Lembrei-me de endoidecer.

O que era fácil – partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo,
De barrete de papel,

A gritar Viva a Alemanha!...
Mas a minha alma em verdade
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade.

Vou deixá-la – decidido –
No lavabo de um Café
Como um anel esquecido,
É um fim mais «raffiné»


Paris, Setembro de 1915.
           MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


in “Sudoeste”, nº 3. Lisboa: Nov. 1935

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