11/01/2017

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Fialho D'Almeida por Columbano Bordalo Pinheiro


(...) Vencidos os cursos scientificos, em vez de seguir, como os meus condiscipulos, nas facilidades profissionaes que elles fomentam cometti a tolice de me lançar na vida literaria, de querer viver por uma penna donde continuamente espirravam revoltas, e que fatalmente havia de me agravar as dificuldades do caminho. Tendo escrito desde então, cerca de mil e trezentas paginas por anno, o que reprezenta uma actividade rara num paiz onde a bagagem literaria é um livro de versinhos e meia duzia d'artigos laudatorios, apenas consegui na opinião de muitos dos meus contemporaneos «arranjados», a reputação dum desequilibrado indolente, que arma á sensação por via do galicismo, e dum prosador colerico, prohibido do sucesso pelo mau séstro de não poder ser lido por senhoras.
(…)
Tornando ás letras, os meus proprios amigos repararam no caracter fragmentario dos meus escritos, e os mais ferozes me accusam d'intrometter fézes humanas nas tintas duma paleta onde só deveriam esmair suavemente as côres do espectro. O primeiro ponto é bem notado, eu mesmo me entristeço de até á hora presente não ter senão uma efemera bagagem de historietas d'espuma e artigos «mais ou menos verrineiros». Pouco importa que essa obra faça o melhor de cinco ou seis mil paginas, e represente a fadiga de mais de quinze annos de nervos excitados. O publico entre nós não divinisa senão fabricantes de grandes calhamaços (criterio natural num paíz onde a leitura é toda de lombadas), e mesmo que eu fizesse naquelles pobres bocados, maravilhas, passaria sempre por um chronista aguado das futilidades mansas do meu tempo.
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A cada instante abordam-me os ingenuos – mas porque não escreve você um livro inteiro? Um grande romance, um quadro critico?...
Imaginam que esses trabalhos se abordam com a inconsequencia e a rapidez de vinte ou trinta paginas; mal comprehendem que sejam precisos longos mezes d'estudo, annos de concentração, paciencias benedictinas de factura, e durante todo esse tempo quem é que garante aos desprovido escritor, o passadio, e depois da obra feita, quanto dá por ella o editor, ou mesmo quem é que a edita, não havendo em Portugal senão trezentas pessoas capazes de pagar até seis tostões por exemplar?
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Na literatura, princezas, não ha nem pode haver palavras sujas. O que ha é assumptos sujos, assumptos pulhas, deleterios assumptos, que os escritores não inventam, e fazem parte do dia a dia da cidade, assumptos enfim de que a linguagem escrita é apenas o impreterivel signal graphico."

Fialho D'Almeida, “Á Esquina – jornal d'um vagabundopp. XVI, XVIII, XXV, Livraria Clássica Editora, 1921, LX

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